Por MARCELO OROZCO
Em 1990, bem-humorados e cientes da enorme quantidade já existente de livros sobre Bob Dylan, os jornalistas britânicos Patrick Humphries e John Bauldie batizaram sua nova obra de Oh No! Not Another Bob Dylan Book (algo como “Oh, não! Mais um livro sobre Bob Dylan?”). Você pode facilmente trocar “Bob Dylan” por “Beatles” e o efeito será o mesmo.
A imensa bibliografia sobre o quarteto provoca o mesmo pensamento quando aparece um volume novo sobre o tema: era mesmo necessário? No caso de One, Two, Three, Four: The Beatles in Time, publicado em abril último no Reino Unido, a resposta é: sim, era necessário.
“Causos”
É um livro muito divertido porque explora os “causos” e anedotas do cotidiano dos Beatles e das pessoas em torno deles que costumam ficar de fora das obras mais, digamos, importantes. Personagens de passagem rápida, aspectos de personalidade e métodos de trabalho dos rapazes de Liverpool – essas minúcias esquecidas são a essência do texto.
O autor de One, Two Three, Four é Craig Brown, 63 anos, jornalista inglês que, além dos trabalhos em grandes publicações, se destacou escrevendo paródias na revista mezzo-satírica, mezzo-séria Private Eye, que teve seu auge no Reino Unido entre os anos 1960 e 1980.
Brown reconta as peripécias da adolescência e do período pré-fama. É cáustico ao apontar como o “rebelde” John Lennon se derretia todo na presença de alguém da família real naqueles primeiros anos de Beatlemania.
Também ressalta as confortáveis infância e adolescência de Lennon como um bom menino de classe média remediada nos duros anos pós-guerra (criado pela moralista severa de nariz empinado Tia Mimi, com quem foi o maior docinho de pessoa até morrer), enquanto os outros três colegas eram realmente proletários. Pouco a ver com o “herói da classe trabalhadora” que ele advogou ser em 1970.
Há capítulos dedicados a fãs quase anônimos, a guias de tours por Liverpool (e a rivalidade entre eles), ao esnobismo da velha guarda em relação ao grupo nos primeiros anos – desde a aristocracia britânica à estrela de cinema Marlene Dietrich.
Deliciosa é a parte que descreve o processo criativo de “Eleanor Rigby” – que Paul McCartney iniciou como “Ola Na Tungee” e, depois, chegou a rebatizar de “Daisy Hawkins”. Mais famosa, a história de como “Scrambled Eggs” se transformou em “Yesterday” empalidece perto dessa.
O baterista tragicômico
Mas, de todos os coadjuvantes que merecem uma menção mais extensa em One, Two, Three, Four, o caso mais tragicômico é o de Jimmie Nicol, um obscuro baterista que foi contratado em junho de 1964 para cobrir a licença médica de Ringo Starr (que operou as amídalas e ficou de molho uns dias) na primeira turnê dita mundial dos Beatles, com passagens por Dinamarca, Holanda, Ásia e Oceania.
Jimmie teve delírios de grandeza e acreditou que era um beatle, confessando que chegou a desejar que Ringo não voltasse. No total, tocou a bateria em apenas oito shows até devolver a vaga ao titular. Mas a fantasia de que era alguém maior do que sua capacidade indicava permaneceu por um tempo.
Nos anos a seguir, Nicol recusou vagas com artistas de sucesso razoável e teimou em criar sua própria banda. Conseguiu contratos com gravadoras e lançou compactos absolutamente fracassados em todos os aspectos.
Ficou paranóico, acreditando piamente que Brian Epstein, o empresário dos Beatles, arruinou sua vida e manipulou a indústria da música para que ele não tivesse chances e seus discos não alcançassem sucesso.
Isso nos anos 1960. Longas décadas ainda mais obscuras vieram e, em 1988, Nicol chegou ao ponto de espalhar para jornais a “notícia” de que tinha morrido apenas para atrair algum tipo de atenção.
Para quem achava que a história de Pete Best, chutado para dar lugar a Ringo às vésperas da gravação do primeiro disco “de verdade” em 1962, era a pior de um baterista dos Beatles, é bom rever os conceitos.
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Obs.: Até a data deste post, não há edição brasileira de One, Two, Three, Four. Espera-se que isso venha a acontecer.
O livro pode ser comprado na Amazon brasileira. A versão para Kindle: https://amzn.to/33kX2hM
Nossa, não sabia da existência desse livro. Se não estivesse falido, iria atrás dele. Parabéns pelo texto preciso e delicioso de sempre. E não sabia desses detalhes do Jimmie Nichol. E me surgiu a dúvida sádica: será que algum desses oitos shows que ele fez como baterista dos Beatles foi gravado?
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