40 anos sem Inspetor Clouseau

Por MARCELO OROZCO

Em 24 de julho de 1980, Peter Sellers morreu aos 54 anos com o último de seus infartos. Nessas quatro décadas, talvez tenha se diluído a popularidade do inglês como grande astro da comédia, especialmente nos anos 1960/70 quando explodiu com seu Inspetor Clouseau dos filmes da série A Pantera Cor-de-Rosa. Sem falar em seus três papéis na obra-prima do humor distópico Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964), do diretor Stanley Kubrick.

Com sua facilidade para criar vozes e modificar a aparência, Sellers foi um ator versátil. E um dos maiores neuróticos da história do entretenimento – um ramo pródigo em gente difícil. Capaz de incorporar infinitas personalidades, nunca encontrou a sua própria. 

Toda essa complexidade artística e pessoal foi dissecada no livro The Life and Death of Peter Sellers, do jornalista e acadêmico galês Roger Lewis, publicado originalmente em 1994. A obra serviu de base para o bom filme homônimo (no Brasil, A Vida e Morte de Peter Sellers), produção BBC/HBO de 2004 com Geoffrey Rush. 

Ninguém que o conheceu consegue dizer que existia um ser humano caloroso dentro daquele corpo. Suas relações amorosas, com quatro casamentos, foram mecânicas. E ele sempre preferiu objetos (principalmente novidades tecnológicas – ficaria mais louco ainda hoje em dia) ao contato humano. 

Lewis, 60 anos e também autor de biografias de Anthony Burgess (escritor de Laranja Mecânica) e do ator Lawrence Olivier, foi fã de infância de Sellers. Por isso, muitas vezes divaga e arruma um jeito de enfiar suas lembranças pessoais no texto. Graças a sua apuração minuciosa e à quantidade de informações, isso não chega a afetar a qualidade. 

Filhinho da mamãe

Sellers veio ao mundo sucedendo um primeiro irmão que nasceu morto um ano antes e chegou a ser registrado com o nome de Peter. Legalmente, o futuro ator foi batizado como Richard Henry. Mas seus pais sempre o chamaram de Peter. 

Absurdamente possessiva com o filho que vingou, a mãe fez o pai ir dormir em outro quarto para que o novo Peter ocupasse a cama de casal, protegido de qualquer mal. 

A carreira de artistas itinerantes dos pais despertou os talentos de Peter. Que floresceram no programa cômico de rádio The Goon Show, sucesso na BBC de 1951 a 1960. Ele e os parceiros Harry Secombe e Spike Milligan (o cérebro do trio) revolucionaram a comédia com seus esquetes cheios de absurdos, trocadilhos e milhares de vozes inventadas. 

Um humor doido que seria herdado e ampliado pelo Monty Python na TV britânica e no cinema e pelos jogos de palavras de John Lennon – que idolatrava os Goons na adolescência – na música e em textos (no rodapé deste post, leia sobre mais conexões entre Peter Sellers e os Beatles antes de eles fazerem sucesso).

Rumo ao topo

O destaque no The Goon Show encaminhou Sellers para trabalhos no cinema britânico em meados da década de 1950, chegando a fazer três papéis na simpática comédia O Rato Que Ruge (The Mouse That Roared), de 1959, na qual um país menor que um bairro de São Paulo declara guerra aos Estados Unidos e… VENCE! 

(Creia: em outro milênio, O Rato Que Ruge passava na Sessão da Tarde da Globo)

Pouco depois, ele fez Com Milhões e Sem Carinho (The MIllionairess) com a já estrela internacional Sophia Loren. E pirou. Obcecado, Sellers criou a certeza de que conquistaria Sophia – que não lhe deu razões para isso – e arruinou seu primeiro casamento, já comprometido por desatenção e comportamento irascível com esposa e filho.

Nada disso parecia afetar a carreira. Em 1962, Sellers praticamente roubou o filme Lolita, a adaptação de Stanley Kubrick para o livro de Vladimir Nabokov sobre um pedófilo, num papel que era para ser secundário e com pouco tempo de tela. E não exatamente cômico.

O Inspetor

O estrelato mundial de verdade viria com A Pantera Cor-de-Rosa, de 1963. Numa farsa policial leve com estrelas de primeiro time, ele engoliu todo o elenco com seu Inspetor Clouseau, o detetive trapalhão e incompetente da polícia francesa. 

O sucesso foi tanto que, já no ano seguinte, ele repetiria o papel em Um Tiro no Escuro. Uma sequência que se tornaria uma franquia com outros filmes nos anos 1970, bons de bilheteria apesar da qualidade decrescente.

Para coroar esse auge, ainda veio Dr. Fantástico, de novo com Stanley Kubrick. Uma comédia sinistra sobre o holocausto nuclear em que Sellers mais uma vez fez três papéis. Seriam quatro, se ele não tivesse machucado um tornozelo.

O filme deveria estrear em 22 de novembro de 1963 – só que o presidente John Kennedy foi assassinado na hora do almoço daquele dia e o lançamento ficou para 1964.

13 infartos seguidos

Em seu filme seguinte, Sellers teria a chance de ouro de trabalhar com Billy Wilder, o melhor diretor de comédias da época, em Beija-me, Idiota (Kiss Me, Stupid). Antes das filmagens, a admiração era mútua e Wilder chamou o inglês porque não poderia contar com seu ator favorito, Jack Lemmon.

A admiração logo acabou graças às atitudes egoístas e irritantes do ator, muitas delas intencionais para se rebelar contra a proibição de improvisos imposta pelo diretor.

Na sexta semana de trabalho, em abril de 1964, Sellers teve seu primeiro infarto em Los Angeles. Ou melhor, seus primeiros 13 infartos. Um após outro. Num deles, chegou a ser declarado morto por um minuto.

A primeira reação de Wilder, com todo seu humor cáustico e quando as notícias ainda diziam que o ataque cardíaco era leve, ilustra bem como andava o clima com Sellers no set.

“Infarto como? Primeiro é preciso ter um coração para sofrer um infarto”, disse o diretor, conforme registra a biografia de Roger Lewis.

O repouso forçado de seis meses do astro fez Wilder abrir mão dele e refilmar tudo com Ray Walston. E a experiência de quase morte levou Sellers a optar por filmes mais corriqueiros e fáceis de fazer quando voltou a atuar.

Sellers. Peter Sellers

Peter Sellers como um dos James Bond genéricos da comédia Casino Royale, de 1967 (Reprodução DVD)

Mas fácil de filmar não é um termo que possa ser aplicado a Casino Royale, de 1967.

Não confunda esse Casino Royale com o Cassino Royale (2006), com Daniel Craig como James Bond. Ambos são baseados no mesmo livro de Ian Fleming, o primeiro sobre o agente secreto britânico. E qualquer semelhança acaba aí.

Uma pegadinha na venda de direitos ainda nos anos 1950 fez com que Cassino Royale fosse o único texto de Fleming que não pertencia aos donos da franquia de cinema até que um acordo finalmente fosse alcançado já no século 21.

Voltando para 1967. Os detentores dos direitos para o cinema quiseram competir com a franquia oficial e produzir um blockbuster cheio de estrelas. Virou uma bagunça com cinco diretores (mais um sexto não creditado) e uma história sem pé nem cabeça que é apenas uma coleção de imagens tipicamente anos 1960 até visualmente bonita.

A cabeça de Sellers encarava de outra forma. A biografia conta como ele realmente acreditou que era o novo James Bond (na trama caótica dessa farsa, ele era apenas um de vários 007), tomando o lugar de Sean Connery. Ele se viu como um galã másculo, sedutor e heróico, não um cômico das mil vozes.

O comportamento do Sellers/Bond no set ficou insuportável. Chegou a se recusar a contracenar com Orson Welles (o mito de Cidadão Kane, “convidado especial” de Casino Royale). A sequência em que os dois se enfrentam numa partida de bacará teve de ser filmada com cada um separadamente e depois editada.

Além do jardim

Em retrospecto, Casino Royale marcou o início do fim de Sellers como astro de ponta e ele destruiu mais dois casamentos, além de se deixar tomar por drogas e pelas orientações de um guru supostamente mediúnico.

Nos anos 1970, filmes medianos, ruins e péssimos afastaram público. Ele só recuperava as finanças (às vezes, a contragosto, engolindo o ego) com os eventuais filmes como Inspetor Clouseau, esses sim ainda um sucesso.

Até que Sellers ficou fixado no livro O Videota, de Jerzy Kosinski, com a história de um jardineiro iletrado cujo conhecimento vinha todo do que ele assistiu na TV nas horas vagas – e os lugares-comuns que repetia acabariam levando-o à presidência dos EUA. 

Peter se identificou fortemente com o personagem, uma pessoa vazia que apenas reproduzia falas. E trabalhou intensamente para que o filme fosse realizado e ele interpretasse o jardineiro Chance. Daí veio Muito Além do Jardim (Being There), em 1979.

O jardineiro não-pessoa lhe valeu a segunda indicação como Melhor Ator ao Oscar (a primeira, por Dr. Fantástico – perdeu em ambas) e elogios que há tempos ele não ouvia. Mas sua saúde já andava em declínio nas filmagens. 

E só piorou: Sellers teve o 14º infarto da vida em abril de 1980 e o fatal veio três meses depois, morrendo num hospital de Londres. Praticamente sem coração.

***

The Life and Death of Peter Sellers está disponível apenas em versões físicas para importação na Amazon brasileira. A página do livro está neste link.


Adendo 1:  Anda bem mais difícil assistir a um filme com Peter Sellers do que décadas atrás (quando até os mais fracos pipocavam na TV aberta), a não ser que se compre um DVD ou Blu-Ray.

Às vezes, ainda surge na TV a cabo uma reprise de Lolita e Dr. Fantástico. Ou algum A Pantera Cor-de-Rosa. Ou Um Convidado Bem Trapalhão. Ou Muito Além do Jardim. Em streaming, aparecem por um tempo e somem. Eventualmente voltam. Nem sempre.

Mas, além desses mais notórios, ver outros trabalhos de Sellers no Brasil é um enorme desafio – e não é um problema que ocorre só com ele: a existência do cinema pré-anos 1980 em geral está sendo apagada nestes tempos on-line. Na TV a cabo, ainda há canais específicos que exibem alguns. Nas plataformas de streaming, esse passado está infimamente disponível.


Adendo 2: Vale notar que, além da influência do The Goon Show sobre um John Lennon bem novinho e louco por trocadilhos, Sellers teve outras conexões indiretas com os Beatles anos antes de o grupo ter sucesso.

O cultuado curta-metragem experimental indicado ao Oscar The Running Jumping & Standing Still Film, de 1959, foi co-dirigido por Sellers e Richard Lester – este comandaria os dois primeiros longas do quarteto, Os Reis do Ié-Ié-Ié e Help!

Os discos com esquetes de comédia de Sellers foram produzidos por George Martin. E isso foi uma das razões de Martin cair nas graças de Lennon quando começaram a trabalhar juntos.

3 comentários em “40 anos sem Inspetor Clouseau

  1. Nossa, ele morreu no aniversário de 71 anos do meu pai! Sobre ele, realmente fica claro que nem sempre é muito legal conhecer a vida de um artista que a gente admira. Mas, por outro lado, é bom saber que, no fundo, genialidades profissionais à parte de alguns, somos todos meros seres humanos com prazo de validade bem finito. Grande abraço e tudo de bom!

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