A história do Bayern (bem antes dos 8 x 2)

Por MARCELO OROZCO

O inacreditável e histórico massacre de 8 x 2 do Bayern de Munique sobre ninguém menos que o Barcelona pelas quartas-de-final da Liga dos Campeões da Europa, na sexta-feira (14/8) em Lisboa, me relembrou de um bom livro com a história do clube bávaro: Bayern: Creating a Global Superclub, do jornalista alemão Uli Hesse, publicado originalmente em 2016.

Hesse, 54 anos, é torcedor do Borussia Dortmund, clube de sua cidade natal e maior rival nacional do Bayern nos últimos anos. Isso não o impediu de fazer com capricho profissional um panorama sobre a trajetória do clube mais vencedor de seu país. Ele também é autor de uma bela obra sobre o futebol alemão, Tor!: The Story of German Football, cuja primeira edição saiu em 2002.

O livro sobre o Bayern conta as origens do clube e sua ascensão até ser campeão da Alemanha pela primeira vez em 1932, numa época em que o campeonato era subdividido em ligas regionais cujos campeões disputavam a fase final nacional em jogos de mata-mata.

Bayern x Hitler

Logo após alcançar sua maior glória até então, o clube de Munique caiu em desgraça, que o levaria a esperar 37 anos por outro troféu do campeonato nacional. Afinal, no começo do ano seguinte, Adolf Hitler tomou o poder na Alemanha e o Bayern tinha muitos judeus na direção, na equipe técnica e no time.

Hesse analisa com sua visão germânica:

“Cresceu uma noção errônea de que o Bayern não era um clube importante até ter a sorte de contar com uma geração de ouro sobre a qual o time dos anos 1970 foi montado. Na verdade, até mesmo alemães não tinham – ou não têm – conhecimento total da história. Quando eu cresci, nos anos 1970 e 1980, tínhamos certeza de que o 1860 era o grande clube de tradição de Munique, enquanto o Bayern era o novo-rico que chegou depois. Ninguém nos dizia que isso era besteira. Ninguém nos dizia que havia uma razão para os longos anos de seca do Bayern. Ninguém nos dizia que os nazistas praticamente destruíram o melhor clube da nação.”

Logo após a ascensão de Hitler ao poder em janeiro de 1933, renunciaram a seus postos no Bayern o presidente Kurt Landauer e o treinador dos juvenis, Otto Beer – ambos judeus, numa esperançosa medida preventiva para evitar perseguições ao clube. O técnico do time principal Dombi Kohn e o atacante Oskar Rohr fugiram para o clube Grasshoppers, da Suíça.

A repressão mais pesada e assassina aos judeus do esporte demorou para se intensificar até as Olimpíadas de Berlim em 1936 porque os nazistas queriam manter aparências internacionalmente. Depois disso, quem não fugiu do país ou até da Europa sofreu muito. O ex-presidente Landauer foi para um campo de concentração em 1938 – ele sobreviveria às desgraças da Segunda Guerra e até voltaria a ser o mandatário do Bayern, mas seus quatro irmãos morreram aprisionados. 

O ex-treinador de base Beer e sua família foram mortos. O jogador Rohr teve a infelicidade de trocar a Suíça pela França pouco antes desse país ser invadido pelas tropas alemãs em 1940 – e acabou também num campo de concentração, embora tenha sobrevivido.

O Bayern foi perseguido a ponto de vários de seus jogadores não judeus serem convocados para as frentes de batalha na Segunda Guerra em quantidade maior em relação a outros clubes.

O renascimento

O desmantelamento do “clube judeu” promovido pelos nazistas levou anos para ser recuperado. O Bayern passou a década de 1950 com campanhas medianas na liga do sul alemão, chegando até a ser rebaixado por um ano. Embora ainda não se soubesse, a sorte começou a virar em 1958 quando dois garotos chegaram para as categorias de base do clube, o goleiro Sepp Maier e o meio-campista Franz Beckenbauer.

Beckenbauer novinho erguendo a Copa da Alemanha de 1966 (Reprodução livro Bayern)

Até que eles chegassem ao time principal e se tornassem jogadores de alto nível, houve mais alguns anos duros. Quando a Bundesliga, a liga profissional nacional, foi criada em 1963 para unificar os regionais num campeonato de pontos corridos como os outros principais países futebolísticos da Europa já tinham havia décadas, o Bayern foi preterido e o representante da Bavária foi o 1860 München, o rival da cidade.

A escolha dos dirigentes adiou por dois anos a entrada do Bayern na Bundesliga, até finalmente ser campeão da segunda divisão e disputar a liga principal na temporada 1965-66. Nunca mais saiu dela.

Já profissionalizada, a geração de jovens como Maier e Beckenbauer ganhou três Copas da Alemanha em 1966, 1967 e 1969. E, finalmente, o campeonato nacional também em 1969. O Bayern entrou nos anos 1970 com tudo pronto para ser gigante, reforçado por mais garotos, como o goleador Gerd Müller e o lateral Paul Breitner.

Beatles x Stones

Apesar de tri da Europa em 1974/75/76 e base da seleção da então Alemanha Ocidental (aliás, há um trecho do livro curioso sobre a visita do Bayern à Alemanha Oriental para um jogo da Copa dos Campeões da Europa) que conquistou a Eurocopa de 1972 e a Copa do Mundo de 1974, o Bayern teve uma rivalidade doméstica muito acirrada com o impronunciável Borussia Mönchengladbach (ou “Gladbach”, para tentar simplificar) naquela década. Que não se limitava à divisão dos títulos nacionais. Também se refletia na popularidade de cada time.

Hesse conta: 

“A pergunta ‘Bayern ou Gladbach?’ seria a versão do futebol alemão para o debate ‘Beatles ou Rolling Stones?’ O Bayern seria os Beatles nessa controvérsia, uma marca global, elegante e inteligente, sem falar de rica, mas talvez racional demais e muito parte do Sistema. O Gladbach, por outro lado, era descrito com termos associados aos Stones: loucos, viscerais, rebeldes – bem sucedidos, mas sempre em seus próprios termos. Os vira-latas eram atraentes.”

O autor também aponta que a aparente opção política influía nessa divisão. O Bayern era visto como conservador, especialmente por declarações críticas aos sociais-democratas no poder feitas por Beckenbauer e às boas relações do clube com políticos mais à direita. O Gladbach carregava uma aura contestadora, mas há que se considerar que o time de Munique tinha um Breitner com um cabelão estilo afro e aparecendo em revistas lendo O Livro Vermelho, do líder comunista chinês Mao Tsé-Tung.

Breitner (à direita de Karl-Heinz Rummenigge, atual presidente do Bayern) sem O Livro Vermelho de Mao à mão (Reprodução livro Bayern)

Porém, o Gladbach ficou pelo caminho após aqueles grandes anos 1970 (o máximo a que chegou foi um vice na Copa dos Campeões da Europa) e encolheu. O Bayern seguiu se fortalecendo para ser uma força mundial constante.

O time odiado

Apesar de uma grave crise financeira na virada dos anos 1970 para os 1980, o Bayern voltou a ser muito competitivo. Porém, levou azar nas finais europeias que disputou em 1982, 1987 e 1999 – esta traumática, tomando uma virada de 2 x 1 do Manchester United com dois gols nos acréscimos, semelhante à vitória do Flamengo sobre o River Plate na final da Libertadores em 2019.

Mas, em seu país, a supremacia do Bayern foi sendo construída temporada a temporada, muitas vezes com conquistas favorecidas por combinações de resultados improváveis e lances questionáveis. Hesse diz que isso criou entre os alemães um termo que poderia ser traduzido como “sorte de Bayern”, em que se recebe uma recompensa não merecida em detrimento de outros que batalharam muito e tropeçaram no último degrau.

Até surpreende verificar no livro que, na verdade, o Bayern é o time mais odiado da Alemanha – ou seja, por todos que não torcem para o clube. Nos anos 1990, a superioridade e a quantidade de contratações de astros rendeu ao time o apelido relativamente pejorativo de “FC Hollywood”.  

O livro chega ao século 21 com novas conquistas europeias e é concluído com os primeiros tempos do treinador catalão Pep Guardiola (ex-Barcelona e hoje no Manchester City), uma passagem que acabaria após a publicação do livro em 2016 com títulos domésticos, mas sem vencer a Liga dos Campeões da Europa. Talvez Hesse possa fazer atualizações em breve, no mínimo por causa desses 8 x 2 no Barcelona.

***

Bayern: Creating a Global Superclub não foi publicado no Brasil. A edição em inglês pode ser comprada aqui.

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