Marxismo, linha Groucho

Por MARCELO OROZCO

Humor é fundamental. Não é escapismo, é uma forma de rir do absurdo da vida. Neste 2020 que diariamente desafia nossa racionalidade, o consolo da comédia se faz ainda mais necessário, seja qual for o formato – cartuns, textos, TV, cinema. De todos os humoristas que admiro, confesso que tenho um altar pessoal para Groucho Marx (1890-1977), a figura verborrágica dos filmes dos Irmãos Marx dos anos 1930 e 1940 (dos outros irmãos, Chico era o caricato e Harpo era o mímico, enquanto o pouco carismático Zeppo durou pouco e foi trabalhar nos bastidores, onde se dava melhor). 

Lembrei de Groucho porque a morte dele completa 43 anos em 19 de agosto – ou seja, morreu velhinho, com 86 anos, três dias depois do Elvis Presley, portanto ninguém deu a menor pelota na época. Nem é uma data redonda, mas se há uma chance de falar de Groucho Marx, tenho de falar.

A figura de óculos, charuto e sobrancelhas e bigode pintados com graxa preta é uma das maiores referências do cinema, imitada até hoje. E, como comediante, Groucho é reverenciado por outros gigantes do ramo.

A graça de Groucho em seus filmes, programas de rádio e TV (todos esses com roteiristas por trás, mas com algum tipo de participação dele) e livros (esses de autoria dele mesmo) vinha muito de jogos de palavras da língua inglesa, o que muitas vezes torna dificílimo (ou quase impossível) traduzi-lo para o português com o mesmo resultado. 

Esse humor que brinca muito com o idioma não é exatamente o estilo brasileiro de comédia, mais afeito a bordões e piadas de situação – se bem que o Barão de Itararé na primeira metade do século 20 e Luis Fernando Veríssimo, quando era mais humorista que cronista, tenham se saído bem nessa linha de torcer e retorcer a linguagem.

Com essa dificuldade, apenas dois volumes foram publicados no Brasil: a autobiografia Groucho e Eu (original de 1951, no Brasil em 1991) e os textos humorísticos de Memórias de um Amante Desastrado (original de 1959, aqui em 1990) – ambos publicados pela editora Marco Zero e fora de catálogo há muito tempo, disponíveis apenas em sebos.

Mesmo caixas de DVDs compilando os filmes dos Irmãos Marx ou o programa de perguntas de Groucho na NBC-TV americana nos anos 1950, que chegaram a estar disponíveis no país há alguns anos, desapareceram do mercado. Ou seja, é preciso um esforço muito grande de um brasileiro para conhecer um dos maiores nomes da comédia.

Mas algumas tiradas curtas e diretas, anárquicas e anti-autoridade resistem à tradução e podem dar uma noção do Pensamento Marxista (linha Groucho). Aí vão algumas tiradas de várias fontes (filmes, textos, entrevistas e outros):

“A única risada verdadeira vem do desespero.”

“Estes são meus princípios. Se você não gostar deles, tenho outros.”

“As restrições políticas, religiosas e de qualquer tipo mataram a sátira. Muita gente parece não perceber que a primeira coisa que desaparece quando estão transformando um país num estado totalitário é a comédia.”

“‘Deus ajuda a quem cedo madruga.’. Isto é pura cascata. A maioria dos ricos que conheço gosta de dormir tarde e despedirão [sic] o empregado que acordá-lo antes das três da tarde.”

“Na Alemanha, me levaram ao túmulo de Hitler e eu dancei em cima dele. Nunca fui muito bom dançarino, mas fui ótimo naquele dia!”

“Acho a televisão muito educativa. Sempre que alguém a liga, vou para outra sala e leio um livro.”

“Nunca me esqueço de um rosto, mas no seu caso vou abrir uma exceção.”

“Seja lá o que for, eu sou contra!”

“Política é a arte de procurar problemas, encontrá-los por toda parte, diagnosticá-los incorretamente e dar os remédios errados.”

“Qualquer um pode envelhecer. Para isso, basta viver o suficiente.”

“Uma vez, fui à redação do The New York Times e me deram meu obituário para ler. Não estava muito bom. Eu me ofereci para deixar o texto com mais molho, mas eles recusaram.”

“Morrer, minha querida? Esta será a última coisa que farel.”

“Não quero pertencer a nenhum clube que me aceite como sócio.”

Groucho e Eu

A autobiografia de Groucho não deve ser levada muito ao pé da letra, já que ele aproveita muita coisa de sua vida para fazer humorismo, provavelmente distorcendo alguns fatos. Mesmo assim, tem momentos memoráveis.

Como a descrição, ao mesmo tempo cruel e com algum carinho embutido, da competência de seu pai, um pobre alfaiate judeu de Nova York:

“A ideia de que meu pai era alfaiate era uma opinião mantida apenas por ele. Para seus clientes, ele era conhecido como ‘Sam Mal-ajambrado’. Que eu saiba, ele foi o único alfaiate que se recusava a usar fita métrica.

(…)

“Nossa vizinhança era cheia de fregueses de meu pai. Eles eram facilmente reconhecidos na rua, pois andavam com uma perna de calça mais curta do que a outra, uma manga mais comprida que a outra, ou com as golas do casaco indecisas sobre onde descansar. O resultado inevitável é que meu pai nunca tinha o mesmo freguês duas vezes.”

E Groucho e Eu também traz a histórica troca de cartas com o departamento legal dos estúdios Warner Bros., que queria proibir o título Uma Noite em Casablanca (1946, o último dos Irmãos Marx como grupo), da United Artists, pela associação direta com o mítico Casablanca (1942), com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman.

A cada carta sisuda dos advogados da Warner, Groucho pessoalmente respondia aos “Queridos Irmãos Warner” espirituosamente, com um humor que beira o absurdo, cheio de associações delirantes, mas supostamente sérias (embora não fossem nem de longe). Groucho acabou desmontando a determinação obtusa do time legal da Warner.

Nessas cartas, há trechos que se tornaram clássicos do marxismo grouchista:

“Até o momento em que projetamos fazer este filme, eu não tinha ideia de que a cidade de Casablanca pertencia exclusivamente aos Irmãos Warner. No entanto, foi só alguns dias depois que anunciamos nosso filme que recebemos seu longo e ameaçador documento nos alertando para não usar o nome Casablanca. Parece que em 1741, Ferdinand Balboa Warner, seu tataravô, enquanto procurava um atalho para a cidade de Burbank, foi parar nas costas da África e, levantando seu bastão de alpinista (que depois ele transformou em cem ações ordinárias) chamou-a de Casablanca.

(…) 

Vocês reivindicam a posse de Casablanca e que ninguém mais possa usar esse nome sem sua permissão. E quanto a ‘Irmãos Warner’? Vocês também são proprietários desse nome? Provavelmente vocês têm o direito de usar o nome Warner, mas e ‘irmãos’? Profissionalmente, éramos irmãos antes de vocês. Nós já estávamos com o pé na estrada como Os Irmãos Marx quando Vitaphone ainda era um brilho nos olhos de um inventor e, mesmo antes de nós, houve outros irmãos – os Irmãos Smith, os Irmãos Karamazov e Dan ‘Irmãos’, campeão de beisebol em Detroit”.

Os melhores livros

Se Groucho e Eu é um livro divertido, o melhor para conhecer a vida e a carreira dele é a biografia Groucho: The Life and Times of Julius Henry Marx, do jornalista de cinema Stefan Kanfer (morto em 2018 aos 85 anos).

A obra foi publicada em 2000 e, além de detalhes dos filmes, se aprofunda na relação de Groucho com a família, terna mas nem sempre tranquila. Também aborda seu pão-durismo quase neurótico e como acabou se tornando um velhinho facilmente manipulável até a morte.

Também em 2000, o mesmo Kanfer organizou uma ótima compilação de diálogos de filmes e programas de rádio e TV que tem tudo que é necessário para ter a noção do que foi a comédia de Marx: The Essential Groucho.

***

Groucho e Eu está fora de catálogo no Brasil. Essa edição nacional pode ser encontrada em sebos através do Estante Virtual.

A versão em inglês, Groucho and Me, pode ser comprada aqui.

***

Cena de O Diabo a Quatro (Duck Soup) (reprodução filme)

Adendo: Os melhores filmes dos Irmãos Marx são os cinco primeiros: No Hotel da Fuzarca (The Cocoanuts, 1929), Os Galhofeiros (Animal Crackers, 1930), Os Quatro Batutas (Monkey Business, 1931), Gênios da Pelota (Horse Feathers, 1932) e a obra-prima deles, O Diabo a Quatro (Duck Soup, 1933), uma sátira à guerra bem antes do segundo conflito mundial começar em 1939.

No todo, são filmes inconstantes porque seguiam os padrões da época, com números musicais enxertados (e que envelheceram muito mal) entre as partes cômicas. Mas todos têm grandes momentos de Groucho e também Chico e Harpo. Esses cinco filmes chegaram a sair em DVD no Brasil.

Esses filmes foram feitos na Paramount. A seguir, os Marx foram para a Metro Goldwyn Mayer onde, supostamente, receberiam um tratamento mais grandioso graças ao cérebro do estúdio, Irving Thalberg, que bancou a contratação. 

No começo, deu certo. Uma Noite na Ópera (A Night at the Opera, 1935) e Um Dia nas Corridas (A Day at the Races, 1937) são clássicos do cinema e trazem alguns dos esquetes mais memoráveis dos irmãos, embora numa versão um tiquinho mais domesticada que nos primeiros filmes. Também foram as melhores bilheterias que eles jamais tiveram até então.

A precoce morte de Thalberg em setembro de 1936, com apenas 37 anos, também quebrou as pernas dos Irmãos Marx, como o próprio Groucho admitiu. Os últimos cinco filmes do grupo dos Marx, entre 1938 e 1946, são nitidamente bem mais fracos, mesmo com um ou outro bom momento. Os irmãos se separaram e cada um seguiu seu caminho, com Groucho se dando bem melhor na carreira solo.

5 comentários em “Marxismo, linha Groucho

  1. Boa tarde, Marcelo

    Gostei muito do texto acima. Outro dia estava fuçando pela web e achei um texto sobre os Irmãos Marx que era bem legal, mas o seu certamente trouxe mais referências. É uma pena que humoristas tão importantes para o estabelecimento de certos padrões e técnicas utilizados até hoje passem despercebidos aqui no Brasil. E os Marx são referência pra uma baita turma: no curso do Judd Apatow ele conta que os filmes da trupe foram uma das primeiras referências cômicas dele.
    Mas fiquei com uma dúvida sobre o Luis Fernando Veríssimo. Quais obras você indicaria sobre essa fase humorista dele? Fiquei curioso.

    Abraços

    Curtido por 1 pessoa

    1. Obrigado, Guilherme. Olha, o Veríssimo dos velhos tempos de humor (não que ele não seja ótimo como cronista um pouco mais sério) era bom nos personagens que criava naquela época. O Analista de Bagé, o Ed Mort, a Velhinha de Taubaté e as tirinhas As Cobras, que ele mesmo desenhava e hoje ocasionalmente republica em seu Twitter. Entenda que a brincadeira dele com a língua portuguesa não é a mesma anarquia que o Groucho promovia na língua inglesa. São casos e resultados diferentes. Mas o Veríssimo sempre teve isso de se aproveitar do que o idioma proporciona. Por isso, citei-o. Mas acho que o Barão de Itararé estava mais próximo ainda do espírito anti-autoridade do Groucho. Teve uma biografia dele bem boa publicada há uns anos, não sei se dá pra comprar facilmente hoje. Mas vale a pena pesquisar essa grande figura.

      Desculpe a demora para responder. Abração

      Curtir

  2. Marcelo, não sei se você saber, mas onde você acha um belíssimo texto sobre o Groucho é no livro “Um filme é para sempre”, do Ruy Castro, que aliás é meu livro favorito sobre cinema

    Curtido por 1 pessoa

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