Por MARCELO OROZCO
Há uma história muito repetida de que John Lennon nasceu em Liverpool em 9 de outubro de 1940, uma quarta-feira, com a cidade portuária inglesa sob forte bombardeio aéreo das forças da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Um beatlemaníaco chamado Rod Davis se dedicou a pesquisar os jornais da época (especialmente o local The Echo) e publicou os resultados no site de fãs Liverpool Beatle Scene: houve vários ataques alemães naquela semana, mas nenhum aconteceu especificamente na data. Exatos 80 anos depois, as bombas de Hitler pouco importam diante das celebrações do nascimento do beatle.
Entre as inúmeras façanhas de Lennon para a cultura pop, está a mais célebre, talvez a melhor, entrevista de um roqueiro: a concedida para a Rolling Stone no fim de 1970, poucos meses depois do fim dos Beatles. De tão longa e intensa, acabou publicada dividida em duas edições da revista americana em janeiro e fevereiro de 1971.

E, naquele mesmo ano, foi transformada no livro Lennon Remembers. Houve uma edição brasileira em 2001, Lembranças de Lennon, pela Conrad Editora – hoje fora de catálogo, pode ser encontrada em sebos físicos e virtuais.

A conversa foi com Jann S. Wenner, fundador e editor-chefe da publicação. Ficou famosa pela frase “O sonho acabou. Vamos encarar a realidade” (que também era um verso da música “God”, lançada naquela época no álbum John Lennon/Plastic Ono Band).
A entrevista aconteceu num momento de língua solta e autoafirmação para Lennon. Ele estava magoado e ressentido pelos conflitos emocionais que levaram à separação dos Beatles (entre eles, a rejeição a sua nova esposa Yoko Ono).
Também estava cheio de vontade de ter seu trabalho mais reconhecido que o do ex-parceiro Paul McCartney. E seu ímpeto confessional era motivado pela Terapia Primal que vinha fazendo com o psicólogo americano Arthur Janov, baseada em gritos para combater antigos traumas.
A soma disso tudo levou Lennon a ter momentos que beiram o rancor ao falar dos ex-colegas de banda. Também partiu para um exercício de “quem compôs o quê”, que deixou implícito que a famosa parceria Lennon-McCartney foi de fachada praticamente desde sempre, com cada um deles fazendo suas próprias músicas mas cumprindo o acordo verbal de sempre assinar em dupla. A rigor, era uma divisão questionável, já que um sempre colaborou para melhorar as músicas feitas majoritariamente pelo outro.
O espírito competitivo de Lennon transparece de forma até cruel ao falar dos trabalhos solo que outros ex-Beatles, George Harrison e Paul McCartney, lançaram em 1970:
O que acha do disco do George [o álbum triplo All Things Must Pass, hoje visto como um clássico do rock]?
Sei lá, razoável [grifo do livro]. Não ouviria esse tipo de música em casa, mas não quero magoar o George. Não sei o que dizer. É melhor que o do Paul.
O que acha do disco do Paul [o álbum McCartney, em que ele gravou todos os instrumentos]?
Tolo. Imagino que ele acabe fazendo um melhor quando for obrigado. Mas acho o primeiro superficial. Agora, quando escuto rádio e ouço o George, acho meloso… É o que eu penso. Mas meu gosto pessoal é muito estranho.
É interessante imaginar o que Lennon pensaria dessa entrevista de 1970 hoje, se estivesse vivo e com 80 anos de idade. Toda aquela conjunção de fatores acima citados contribuiu para que ele fosse desbocado, o que enriqueceu a entrevista e elevou seu status na cultura pop.
Mas, comparativamente, vale lembrar de outra longa entrevista nos mesmos moldes, realizada em setembro de 1980 pelo jornalista David Sheff para a revista Playboy americana. Naquele momento, Lennon também falou, falou e falou. Abordou a autoria de composições, repassou momentos bons e ruins do passado.
Com praticamente 40 de idade no dia da entrevista, fez tudo isso num tom mais sóbrio, maduro, adulto, depois de cinco anos de período sabático para cuidar do filho Sean Ono Lennon, nascido também em 9 de outubro, mas de 1975. John estava retornando à carreira musical mais tranquilo e suave com o álbum Double Fantasy, em parceria com Yoko Ono.
A versão original dessa outra entrevista saiu na edição de janeiro de 1981 da Playboy, e chegou às bancas americanas quase junto ao assassinato de Lennon por um fã psicopata em 8 de dezembro de 1980, em Nova York.
Essa conversa com a Playboy também virou livro e teve edição brasileira com o nome A Última Entrevista do Casal: John Lennon e Yoko Ono, publicado em 2012 pela Nova Fronteira.
É uma bela entrevista, porém a de 1970 para a Rolling Stone solta muito mais faíscas até hoje. Ou seja, é a entrevista mais rock, para o bem ou para o mal.
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A edição brasileira Lembranças de Lennon está fora de catálogo, mas volumes usados podem ser encontrados aqui e aqui.
A edição americana Lennon Remembers pode ser comprada em capa dura ou capa comum.
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Sobre o autor Jann S. Wenner, há uma ótima biografia dele e da revista Rolling Stone que merece ser abordada aqui no futuro: Sticky Fingers: The Life and Times of Jann Wenner and Rolling Stone Magazine, de Joe Hagan, publicada em 2017.
Republicou isso em o que tá acontecendo por aí?.
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